Dois anos (2020 e 2021) foram marcados por incertezas
não tidas em muito tempo por toda a população mundial: a pandemia da COVID-19
assombrara a vida de todos. Ricos e pobres, mas principalmente pobres. Quantas
vidas foram perdidas? Quantos danos físicos, psicológicos, emocionais,
econômicos e sociais foram decorrentes da pandemia? Uma coisa é certa: a vida
de todo mundo mudou, de alguma forma. Uns mais, outros menos e outros bem
menos.
A chegada da vacina proporcionou para além de muita
negligência governamental no Brasil, a esperança. A única capaz de tomar, aos
poucos, o espaço do medo, da ansiedade, mas que não substituiu o sentimento do
luto das famílias que perderam seus entes, nem daqueles que tiveram debilidades
em decorrência desta.
Esta é apenas uma breve introdução de todo o caos
instaurado (diferentemente) no Brasil e no Mundo, mas que conseguiu ver a luz
ao fim do túnel a partir dos planos de retomada ao que seria o novo normal.
Sustentado pelo retorno da convivência interpessoal, abrindo as portas do
isolamento social, ainda com uso de máscaras e seguindo todas as medidas sanitárias,
houve o retorno das atividades presenciais que outrora estiveram remotas, como
a academia. E assim o fez, as aulas do Departamento de Ciências Geográficas,
assim como os demais departamentos da Universidade Federal de Pernambuco,
retornaram às salas presenciais e não mais virtuais. Com as flexibilizações,
aumento da vacinação e redução do número de mortes e casos graves de infecção da
SARS-CoV-2, as aulas de campo também foram retomadas.
Ainda em meio as incertezas, as aulas de campo foram,
aos poucos, acontecendo. As disciplinas dos semestres 2021.2 e 2022.1 tiveram
suas aulas de campo aprovadas e realizadas. É urgente utilizar esse espaço,
para problematizar algumas questões que envolveram a realização de algumas
dessas atividades, a saber: problemas com a disponibilização de ônibus em
condições seguras e regulares das Leis de Trânsito, corte de verbas e redução
de quilometragem, junção de disciplinas para realização do trabalho de campo em
função da reduzida disponibilidade. Ainda assim, aconteceram, sem maiores
prejuízos.
Quando encaminhados para o fim de um (des)governo
genocida, mais ataques à educação e mais desrespeito com os estudantes que
produzem ciência nas universidades públicas desta “pátria amada”. O cenário era
de cortes, congelamentos e prazos absurdos para utilização do pouco dinheiro
que restou no taxo, que foi totalmente raspado pela “família tradicional
brasileira” antes de debandarem para a terra do Tio Sam. Estudantes
desesperados, incertezas como se já não bastassem as muitas que já se tinha,
bolsas não liquidadas – o puro suco do caos. Fim de período letivo, início de
outro em dezembro, mentes esgotadas, exaustas e implorando por férias – se é
que se tem uma verdadeiramente. E como realizar um trabalho de campo
metodológico nesse momento?
Antes de continuar essa descrição e ao mesmo tempo
desabafo, preciso apresentar aqueles ousados que propuseram a realização de um
campo metodológico em meio ao caos: o PET Geografia. Para aqueles que não
conhecem ou ainda não consegue explicar do que se trata o PET, é um prazer
explicar do que se trata, o grupo que já é minha casa há 4 anos. O PET é o
Programa de Educação Tutorial, vinculado ao Ministério da Educação e que tem em
várias Instituições de Ensino Superior (IES). Especificamente, o PET Geografia
da UFPE é um grupo, que caminha para os 35 anos de existência e que por meio de
processo seletivo, tem estudantes do curso de Geografia da mesma universidade, realizando
atividades de ensino, pesquisa e extensão, que são primordiais no
desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional desses, que recebem do FNDE –
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, uma bolsa de R$ 400,00, que há
pelo menos 10 anos não é reajustada.
Continuando e sem mais delongas... dentro do PETGEO,
realiza-se bianualmente o Meio Ambiente em Foco – MAF e como proposta para o
ano de 2022, o Racismo Ambiental se tornou temática do evento que tratou de
conflitos, territórios e resistências, envolvendo o tema principal. Nesse
segmento, o evento propunha a realização de um trabalho de campo, que por
diversos motivos não aconteceu, mas de toda forma, devido ao envolvimento com a
temática, foi proposto que os petianos realizassem, enquanto grupo, esse campo
metodológico, a fim de promover mais conhecimento e também integração petiana.
Através da Pós-Graduação (PPGEO) e juntamente ao Laboratório
de Estudos e Pesquisa sobre Espaço Agrário e Campesino – LEPEC, foi possível
realizar um campo metodológico em 20 de dezembro de 2022.
Em plena terça-feira de sol no Recife, às 7h30, 11
petianos, o tutor Bira e 5 pós-graduandos estudantes do LEPEC, partiram da
UFPE, rumo ao aprazível trânsito que nos permitiu chegar ao primeiro destino do
dia: Gaibú, praia no Cabo de Santo Agostinho, litoral sul de Pernambuco. De
acordo com os registros do Google Maps, chegamos às 9h30 à Igreja Anglicana
Jesus de Nazaré para conversar com Reverendo Ivaldo sobre o importante trabalho
social que ele desenvolve com várias famílias em vulnerabilidade.
Num breve relato sobre o cenário de Gaibú, não há
preparo tecnológico e educacional para que os jovens tenham acesso à
universidade. Com a chegada do Complexo Industrial e Portuário de SUAPE, muitos
dos jovens e adultos acabaram indo trabalhar na construção e manutenção do
local. Entretanto, é válido problematizar e os fazer pensar, como e quais são
os trabalhos disponíveis para esse público local, sem escolaridade completa,
muitas vezes. Realizado durante a pandemia por membros do LEPEC, um mapeamento
comunitário participativo foi mencionado e descrito como muito importante para
o local.
Em função desse panorama de precariedades e
vulnerabilidade, o Cabo de Santo Agostinho é uma das cidades mais violentas e
perigosas para se viver, viola o direito da mulher – na comunidade das
marisqueiras, por exemplo e é também uma localidade que sofre com o Racismo
Ambiental e a expropriação promovida por Suape. Por isso, projetos sociais como
o “Dar as Mãos” atuam mudando vidas com projeto de vida, educação social,
acolhimento. O “Christian Surfers International” também atua nos projetos de
vida através do Surf.
Ainda, o Cabo de Santo Agostinho é conhecido por ser
também, o paraíso do turismo sexual, e disso, decorrem diversas formas de abuso
e muita transmissão de doenças. O CTA é o Centro de Testagem e Aconselhamento
que atua na conscientização da população sobre a prevenção dessas doenças que
ocorrem pela banalização sexual, abusos, sexo sem preservativo e desses
desdobramentos, a Secretaria de Saúde também passa a estar envolvida, visto os
muitos casos de AIDS/HIV, bem como a Secretaria de Defesa Social pelas muitas
violações de direitos. Não há acesso e preocupação com ginecologia e disso, é
preciso ressignificar a importância da saúde da mulher.
O Cabo também é palco de muita corrupção, ausência de
políticas públicas e violência. Na praia de Gaibú, há somente, uma escola
estadual, com escolarização deficitária, alta taxa de evasão e pelo menos 60%
do público é aprovado mesmo não estando apto.
É importante mencionar que os problemas não são todos
frutos de Suape, mas ainda assim, o complexo afeta toda a comunidade e é tido
como um monstro desde sua instalação. Não houve consulta e nem pesquisa
humanizada e se excedeu a violência. Ao menos 70% do manguezal foi destruído, o
rio reduziu em 40% e o resto do mangue que sobrevive está poluído. Além disso,
não há plano de habitação, nem de conservação ambiental.
Na roda de conversa realizada na Igreja Anglicana, concluiu-se
que a indiferença com a população é um projeto estadual para dizimar a
população pobre, as comunidades tradicionais, lavadeiras e pescadores. Estes
estão a todo momento acometidos pelo descaso ambiental, social, político,
econômico e psicológico.
Após discorrer sobre os muitos assuntos tratados e
informações tristes serem mencionadas, refletimos sobre a realidade que muitas
vezes é cruel. Ainda assim, enxergamos aquela mesma esperança tratada no início
deste texto pela chegada da vacinação. A esperança do trabalho social que cura,
resgata e acolhe. A esperança de que jovens cheguem na universidade por meio do
incentivo daqueles que assim como eles, acharam que não seria possível e mesmo
assim conseguiram. A esperança das boas pessoas que nos acolheram com música,
café, bolacha, fruta e tempo – o precioso tempo.
Depois
de 2 horas e 15 minutos de conversa, nos despedimos dos primeiros anfitriões de
nossa breve estadia na Praia de Gaibú.
-
Que pena! Estavam na praia e já foram embora sem ao mesmo enxergar o mar?
Esse pode ter sido o vosso questionamento, caro
leitor! Mas apesar de estarmos em trabalho de campo, o horário do almoço é
sagrado. E por que não realizá-lo e confraternizá-lo na brisa da praia e após
salgar nossos corpos?
Partimos em direção à Praia de Calhetas, ainda no Cabo
de Santo Agostinho, onde tomamos um refrescante banho de mar e almoçamos sobre
a sombra de uma árvore, que se não me falhe a memória, era um pé de castanhola.
Após nossa horinha de descanso – que de uma horinha não teve nada, e se
estendeu por volta de três horas, tínhamos o último compromisso do dia: visitar
o Engenho Mercês em Ipojuca.
-Existe
um Engenho em Ipojuca? E por que visitá-lo?
Caro leitor, essa sua pergunta pode ter sido fruto de
pouca compreensão da Região Metropolitana do Recife. E ao mesmo tempo,
entende-se o questionamento da existência de um Engenho – que automaticamente
remete nossas lembranças ao período colonial, no meio de uma cidade
metropolitana. O fato é que ao mesmo tempo que existe, o Engenho Mercês se
tornou mais uma das vítimas da imensa derrocada financiada e pensada por Suape,
apoiada pelo governo.
A instalação e manutenção de Suape promoveu a retirada
de muitos moradores e a expropriação de terras que estiveram relacionadas com o
Engenho - que não deixam de estar, direta ou indiretamente relacionadas. Antes
de Suape, a comunidade residente no Engenho não tinha tantos problemas, que só
aumentaram com o complexo industrial.
Não posso esquecer de apresentar nosso anfitrião: Seu
Biu. 59 anos, aposentado. Conhecemos Seu Biu na igreja da fazenda e fomos
agraciados pelos riquíssimos relatos deste homem que tanto já viveu e viu sobre
seus olhos, as modificações geográficas, sociais, econômicas e políticas do
lugar. Ele não foi a escola, e começou a trabalhar aos 7 anos de idade e aos 14
foi fichado. Seu Biu alega ainda, que sua aposentadoria é de um salário mínimo
e que foi dado a ele, a promessa de revisão (que sabemos, que infelizmente,
poucas são as chances de acontecer).
Seu Biu relatou que atualmente a comunidade tem cerca
de 280 famílias, mas que tinha o dobro. Muitos foram embora, por trabalho e
pela expropriação de terra. Não é mais um desejo dos filhos daquela comunidade,
permanecerem ali. Havia uma lagoa no engenho que matava a fome de muita gente
(com alimento propriamente dito e com a comercialização). Infelizmente, já é um
plano empresarial, o aterramento dela para construção – que também sabemos
todos os problemas ambientais que serão desencadeados se isso vier a acontecer.
A lagoa é chamada de “Lagoa de Mercês”.
As famílias da comunidade são trabalhadoras, tem
jovens aprendizes, cerca de 30% trabalham com a pesca e também tem alguns
aposentados. A terra, é comunitária e as casas não tem documentação, mas de
acordo com a lei, a partir de 6 anos de residência, já se tornam posseiros do
lugar. Quanto a educação, atualmente já há o pleno acesso as escolas, mas o Seu
Biu relata, que infelizmente, não é uma opção de muitos jovens, que em suas
palavras, são “desordeiros” e que além de não estudar, também não querem
continuar a trabalhar com o plantio no local.
A pessoa mais idosa da comunidade tem 91 anos e o meu
objetivo mesmo é fazer inveja a geração Z, sedentária, que seu Manoel Deodato –
do qual estamos falando, vai para o roçado, anda de bicicleta, bebe whisky e
dança. Vida longa e saudável!
Fomos até o pátio do engenho, que é cheio de nomes
africanos.
-Nomes
africanos?
Isso mesmo, caro leitor. Intencionalmente, eu optei
por deixar a melhor parte da história para o final – mesmo que infelizmente, a
melhor parte não signifique, a todo tempo, a mais feliz. Também não estou
dizendo que é triste. O fato é, que há cerca de 6 anos, descobriram e
reconheceram que o engenho, era na verdade, um quilombo, e esse fato garantirá
que aquela terra, não possa ser tomada. Ao mesmo tempo que revela, a história
de pessoas, que muito sofreram e lutaram para sobreviver naquele lugar. O
grande – literalmente grande, símbolo do lugar, é o baobá.
Talvez você não saiba, mas Pernambuco concentra a
maior quantidade de Baobás do mundo, depois da África. Ipojuca elegeu o Baobá
como árvore símbolo da cidade onde há exemplares com mais de 300 anos de vida,
como o que visitamos no Engenho Mercês.
Em relato do querido e atencioso Seu Biu, a história
desse Baobá foi de que uma mulher trouxe em seus cabelos, da África, uma muda e
ali, o plantou, sendo símbolo de resistência e mais uma vez, esperança! A mesma
esperança que nos deu força para viver o nosso novo normal (do qual podemos
problematizar em outro momento), durante a pandemia e também aquela esperança
semeada em nossos corações com os relatos na Igreja Anglicana em Gaibú.
Por fim, antes de retornarmos, visitamos o mangue que
está sendo destruído por Suape, mas que resistirá, graças aos esforços dos
líderes da comunidade. Fica aí, a esperança de que o berçário da vida marinha
possa resistir tão qual, resistiram todos aqueles que viveram no quilombo em
Mercês.
Como nem tudo são flores, até retornar ao ônibus, o
caminho era cheio de gramíneas, carinhosamente chamadas de capim. E onde tem
capim, tem mosquito. Nossa! Como alérgica, minhas pernas e braços só queriam se
ver livres daqueles mosquitos mordedeiros, enquanto que meu coração queria
continuar a ouvir aqueles relatos e observar o pôr do sol sobre as águas
daquele mangue.
Nos despedimos e agradecemos profundamente aos nossos
anfitriões. Retornamos. Havia chegado a hora. Chegava ao fim, a primeira
experiência de campo metodológico do PET Geografia da atual geração, em uma
feliz parceria com o LEPEC. Vou ousar deixar aqui neste relato, que também
vivenciamos o caótico trânsito na conurbação das urbes metropolitanas de Recife
e em Recife.
De volta a UFPE, estávamos contemplados com a
experiência e esperançosos, mais uma vez, de realizar outros trabalhos de campo
metodológicos, assim como, de que nossos esforços, juntos, culminarão para
excelentes atividades no ano de 2023, no qual estaremos rumo aos 35 anos de
programa, a serem completados em setembro.
Agradeço a você, caro leitor, que se debulhou sobre
essa significativa descrição de um dia para além da ordinariedade da rotina.
Espero que tenha gostado! Até a próxima.
Com
carinho, Ariadne.