sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Este é um relato sobre esperança!

Dois anos (2020 e 2021) foram marcados por incertezas não tidas em muito tempo por toda a população mundial: a pandemia da COVID-19 assombrara a vida de todos. Ricos e pobres, mas principalmente pobres. Quantas vidas foram perdidas? Quantos danos físicos, psicológicos, emocionais, econômicos e sociais foram decorrentes da pandemia? Uma coisa é certa: a vida de todo mundo mudou, de alguma forma. Uns mais, outros menos e outros bem menos.

A chegada da vacina proporcionou para além de muita negligência governamental no Brasil, a esperança. A única capaz de tomar, aos poucos, o espaço do medo, da ansiedade, mas que não substituiu o sentimento do luto das famílias que perderam seus entes, nem daqueles que tiveram debilidades em decorrência desta.

Esta é apenas uma breve introdução de todo o caos instaurado (diferentemente) no Brasil e no Mundo, mas que conseguiu ver a luz ao fim do túnel a partir dos planos de retomada ao que seria o novo normal. Sustentado pelo retorno da convivência interpessoal, abrindo as portas do isolamento social, ainda com uso de máscaras e seguindo todas as medidas sanitárias, houve o retorno das atividades presenciais que outrora estiveram remotas, como a academia. E assim o fez, as aulas do Departamento de Ciências Geográficas, assim como os demais departamentos da Universidade Federal de Pernambuco, retornaram às salas presenciais e não mais virtuais. Com as flexibilizações, aumento da vacinação e redução do número de mortes e casos graves de infecção da SARS-CoV-2, as aulas de campo também foram retomadas.

Ainda em meio as incertezas, as aulas de campo foram, aos poucos, acontecendo. As disciplinas dos semestres 2021.2 e 2022.1 tiveram suas aulas de campo aprovadas e realizadas. É urgente utilizar esse espaço, para problematizar algumas questões que envolveram a realização de algumas dessas atividades, a saber: problemas com a disponibilização de ônibus em condições seguras e regulares das Leis de Trânsito, corte de verbas e redução de quilometragem, junção de disciplinas para realização do trabalho de campo em função da reduzida disponibilidade. Ainda assim, aconteceram, sem maiores prejuízos.

Quando encaminhados para o fim de um (des)governo genocida, mais ataques à educação e mais desrespeito com os estudantes que produzem ciência nas universidades públicas desta “pátria amada”. O cenário era de cortes, congelamentos e prazos absurdos para utilização do pouco dinheiro que restou no taxo, que foi totalmente raspado pela “família tradicional brasileira” antes de debandarem para a terra do Tio Sam. Estudantes desesperados, incertezas como se já não bastassem as muitas que já se tinha, bolsas não liquidadas – o puro suco do caos. Fim de período letivo, início de outro em dezembro, mentes esgotadas, exaustas e implorando por férias – se é que se tem uma verdadeiramente. E como realizar um trabalho de campo metodológico nesse momento?

Antes de continuar essa descrição e ao mesmo tempo desabafo, preciso apresentar aqueles ousados que propuseram a realização de um campo metodológico em meio ao caos: o PET Geografia. Para aqueles que não conhecem ou ainda não consegue explicar do que se trata o PET, é um prazer explicar do que se trata, o grupo que já é minha casa há 4 anos. O PET é o Programa de Educação Tutorial, vinculado ao Ministério da Educação e que tem em várias Instituições de Ensino Superior (IES). Especificamente, o PET Geografia da UFPE é um grupo, que caminha para os 35 anos de existência e que por meio de processo seletivo, tem estudantes do curso de Geografia da mesma universidade, realizando atividades de ensino, pesquisa e extensão, que são primordiais no desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional desses, que recebem do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, uma bolsa de R$ 400,00, que há pelo menos 10 anos não é reajustada.

Continuando e sem mais delongas... dentro do PETGEO, realiza-se bianualmente o Meio Ambiente em Foco – MAF e como proposta para o ano de 2022, o Racismo Ambiental se tornou temática do evento que tratou de conflitos, territórios e resistências, envolvendo o tema principal. Nesse segmento, o evento propunha a realização de um trabalho de campo, que por diversos motivos não aconteceu, mas de toda forma, devido ao envolvimento com a temática, foi proposto que os petianos realizassem, enquanto grupo, esse campo metodológico, a fim de promover mais conhecimento e também integração petiana.

Através da Pós-Graduação (PPGEO) e juntamente ao Laboratório de Estudos e Pesquisa sobre Espaço Agrário e Campesino – LEPEC, foi possível realizar um campo metodológico em 20 de dezembro de 2022.

Em plena terça-feira de sol no Recife, às 7h30, 11 petianos, o tutor Bira e 5 pós-graduandos estudantes do LEPEC, partiram da UFPE, rumo ao aprazível trânsito que nos permitiu chegar ao primeiro destino do dia: Gaibú, praia no Cabo de Santo Agostinho, litoral sul de Pernambuco. De acordo com os registros do Google Maps, chegamos às 9h30 à Igreja Anglicana Jesus de Nazaré para conversar com Reverendo Ivaldo sobre o importante trabalho social que ele desenvolve com várias famílias em vulnerabilidade.

Num breve relato sobre o cenário de Gaibú, não há preparo tecnológico e educacional para que os jovens tenham acesso à universidade. Com a chegada do Complexo Industrial e Portuário de SUAPE, muitos dos jovens e adultos acabaram indo trabalhar na construção e manutenção do local. Entretanto, é válido problematizar e os fazer pensar, como e quais são os trabalhos disponíveis para esse público local, sem escolaridade completa, muitas vezes. Realizado durante a pandemia por membros do LEPEC, um mapeamento comunitário participativo foi mencionado e descrito como muito importante para o local.

Em função desse panorama de precariedades e vulnerabilidade, o Cabo de Santo Agostinho é uma das cidades mais violentas e perigosas para se viver, viola o direito da mulher – na comunidade das marisqueiras, por exemplo e é também uma localidade que sofre com o Racismo Ambiental e a expropriação promovida por Suape. Por isso, projetos sociais como o “Dar as Mãos” atuam mudando vidas com projeto de vida, educação social, acolhimento. O “Christian Surfers International” também atua nos projetos de vida através do Surf.

Ainda, o Cabo de Santo Agostinho é conhecido por ser também, o paraíso do turismo sexual, e disso, decorrem diversas formas de abuso e muita transmissão de doenças. O CTA é o Centro de Testagem e Aconselhamento que atua na conscientização da população sobre a prevenção dessas doenças que ocorrem pela banalização sexual, abusos, sexo sem preservativo e desses desdobramentos, a Secretaria de Saúde também passa a estar envolvida, visto os muitos casos de AIDS/HIV, bem como a Secretaria de Defesa Social pelas muitas violações de direitos. Não há acesso e preocupação com ginecologia e disso, é preciso ressignificar a importância da saúde da mulher.

O Cabo também é palco de muita corrupção, ausência de políticas públicas e violência. Na praia de Gaibú, há somente, uma escola estadual, com escolarização deficitária, alta taxa de evasão e pelo menos 60% do público é aprovado mesmo não estando apto.

É importante mencionar que os problemas não são todos frutos de Suape, mas ainda assim, o complexo afeta toda a comunidade e é tido como um monstro desde sua instalação. Não houve consulta e nem pesquisa humanizada e se excedeu a violência. Ao menos 70% do manguezal foi destruído, o rio reduziu em 40% e o resto do mangue que sobrevive está poluído. Além disso, não há plano de habitação, nem de conservação ambiental.

Na roda de conversa realizada na Igreja Anglicana, concluiu-se que a indiferença com a população é um projeto estadual para dizimar a população pobre, as comunidades tradicionais, lavadeiras e pescadores. Estes estão a todo momento acometidos pelo descaso ambiental, social, político, econômico e psicológico.

Após discorrer sobre os muitos assuntos tratados e informações tristes serem mencionadas, refletimos sobre a realidade que muitas vezes é cruel. Ainda assim, enxergamos aquela mesma esperança tratada no início deste texto pela chegada da vacinação. A esperança do trabalho social que cura, resgata e acolhe. A esperança de que jovens cheguem na universidade por meio do incentivo daqueles que assim como eles, acharam que não seria possível e mesmo assim conseguiram. A esperança das boas pessoas que nos acolheram com música, café, bolacha, fruta e tempo – o precioso tempo.

Depois de 2 horas e 15 minutos de conversa, nos despedimos dos primeiros anfitriões de nossa breve estadia na Praia de Gaibú.

- Que pena! Estavam na praia e já foram embora sem ao mesmo enxergar o mar?

Esse pode ter sido o vosso questionamento, caro leitor! Mas apesar de estarmos em trabalho de campo, o horário do almoço é sagrado. E por que não realizá-lo e confraternizá-lo na brisa da praia e após salgar nossos corpos?

Partimos em direção à Praia de Calhetas, ainda no Cabo de Santo Agostinho, onde tomamos um refrescante banho de mar e almoçamos sobre a sombra de uma árvore, que se não me falhe a memória, era um pé de castanhola. Após nossa horinha de descanso – que de uma horinha não teve nada, e se estendeu por volta de três horas, tínhamos o último compromisso do dia: visitar o Engenho Mercês em Ipojuca.

-Existe um Engenho em Ipojuca? E por que visitá-lo?

Caro leitor, essa sua pergunta pode ter sido fruto de pouca compreensão da Região Metropolitana do Recife. E ao mesmo tempo, entende-se o questionamento da existência de um Engenho – que automaticamente remete nossas lembranças ao período colonial, no meio de uma cidade metropolitana. O fato é que ao mesmo tempo que existe, o Engenho Mercês se tornou mais uma das vítimas da imensa derrocada financiada e pensada por Suape, apoiada pelo governo.

A instalação e manutenção de Suape promoveu a retirada de muitos moradores e a expropriação de terras que estiveram relacionadas com o Engenho - que não deixam de estar, direta ou indiretamente relacionadas. Antes de Suape, a comunidade residente no Engenho não tinha tantos problemas, que só aumentaram com o complexo industrial.

Não posso esquecer de apresentar nosso anfitrião: Seu Biu. 59 anos, aposentado. Conhecemos Seu Biu na igreja da fazenda e fomos agraciados pelos riquíssimos relatos deste homem que tanto já viveu e viu sobre seus olhos, as modificações geográficas, sociais, econômicas e políticas do lugar. Ele não foi a escola, e começou a trabalhar aos 7 anos de idade e aos 14 foi fichado. Seu Biu alega ainda, que sua aposentadoria é de um salário mínimo e que foi dado a ele, a promessa de revisão (que sabemos, que infelizmente, poucas são as chances de acontecer).

Seu Biu relatou que atualmente a comunidade tem cerca de 280 famílias, mas que tinha o dobro. Muitos foram embora, por trabalho e pela expropriação de terra. Não é mais um desejo dos filhos daquela comunidade, permanecerem ali. Havia uma lagoa no engenho que matava a fome de muita gente (com alimento propriamente dito e com a comercialização). Infelizmente, já é um plano empresarial, o aterramento dela para construção – que também sabemos todos os problemas ambientais que serão desencadeados se isso vier a acontecer. A lagoa é chamada de “Lagoa de Mercês”.

As famílias da comunidade são trabalhadoras, tem jovens aprendizes, cerca de 30% trabalham com a pesca e também tem alguns aposentados. A terra, é comunitária e as casas não tem documentação, mas de acordo com a lei, a partir de 6 anos de residência, já se tornam posseiros do lugar. Quanto a educação, atualmente já há o pleno acesso as escolas, mas o Seu Biu relata, que infelizmente, não é uma opção de muitos jovens, que em suas palavras, são “desordeiros” e que além de não estudar, também não querem continuar a trabalhar com o plantio no local.

A pessoa mais idosa da comunidade tem 91 anos e o meu objetivo mesmo é fazer inveja a geração Z, sedentária, que seu Manoel Deodato – do qual estamos falando, vai para o roçado, anda de bicicleta, bebe whisky e dança. Vida longa e saudável!

Fomos até o pátio do engenho, que é cheio de nomes africanos.

-Nomes africanos?

Isso mesmo, caro leitor. Intencionalmente, eu optei por deixar a melhor parte da história para o final – mesmo que infelizmente, a melhor parte não signifique, a todo tempo, a mais feliz. Também não estou dizendo que é triste. O fato é, que há cerca de 6 anos, descobriram e reconheceram que o engenho, era na verdade, um quilombo, e esse fato garantirá que aquela terra, não possa ser tomada. Ao mesmo tempo que revela, a história de pessoas, que muito sofreram e lutaram para sobreviver naquele lugar. O grande – literalmente grande, símbolo do lugar, é o baobá.

Talvez você não saiba, mas Pernambuco concentra a maior quantidade de Baobás do mundo, depois da África. Ipojuca elegeu o Baobá como árvore símbolo da cidade onde há exemplares com mais de 300 anos de vida, como o que visitamos no Engenho Mercês.

 

Em relato do querido e atencioso Seu Biu, a história desse Baobá foi de que uma mulher trouxe em seus cabelos, da África, uma muda e ali, o plantou, sendo símbolo de resistência e mais uma vez, esperança! A mesma esperança que nos deu força para viver o nosso novo normal (do qual podemos problematizar em outro momento), durante a pandemia e também aquela esperança semeada em nossos corações com os relatos na Igreja Anglicana em Gaibú.

Por fim, antes de retornarmos, visitamos o mangue que está sendo destruído por Suape, mas que resistirá, graças aos esforços dos líderes da comunidade. Fica aí, a esperança de que o berçário da vida marinha possa resistir tão qual, resistiram todos aqueles que viveram no quilombo em Mercês.

Como nem tudo são flores, até retornar ao ônibus, o caminho era cheio de gramíneas, carinhosamente chamadas de capim. E onde tem capim, tem mosquito. Nossa! Como alérgica, minhas pernas e braços só queriam se ver livres daqueles mosquitos mordedeiros, enquanto que meu coração queria continuar a ouvir aqueles relatos e observar o pôr do sol sobre as águas daquele mangue.

Nos despedimos e agradecemos profundamente aos nossos anfitriões. Retornamos. Havia chegado a hora. Chegava ao fim, a primeira experiência de campo metodológico do PET Geografia da atual geração, em uma feliz parceria com o LEPEC. Vou ousar deixar aqui neste relato, que também vivenciamos o caótico trânsito na conurbação das urbes metropolitanas de Recife e em Recife.

De volta a UFPE, estávamos contemplados com a experiência e esperançosos, mais uma vez, de realizar outros trabalhos de campo metodológicos, assim como, de que nossos esforços, juntos, culminarão para excelentes atividades no ano de 2023, no qual estaremos rumo aos 35 anos de programa, a serem completados em setembro.

Agradeço a você, caro leitor, que se debulhou sobre essa significativa descrição de um dia para além da ordinariedade da rotina. Espero que tenha gostado! Até a próxima.

Com carinho, Ariadne.